THE FITS ( 2015 / EUA / drama / 71' ) de Anna Rose Holmer - por Dario PR



Anna Rose Holmer (foto) faz seu debute em longa de ficção num filmaço que ela escreveu, produziu e dirigiu, com baixíssimo orçamento e a certeza de quem sabe o que está fazendo e aonde quer chegar. Ao final da sessão, o espectador tem a consciência de que acabou de ver uma obra de realizadores que ainda vão fazer muitos filmes inesquecíveis e dar o que falar na cena ‘cine’ americana.  

A ambivalência que paira por todo o longa começa no título. Em inglês The Fits pode significar ajustes, encaixes, enquadramentos, adaptações. Mas também pode ser convulsões, tremores, trancos, ataques epileptoides. Os dois sentidos cabem perfeitamente nessa película. 

Nossa protagonista onipresente chama-se Toni, um nome também ambíguo para uma menina americana negra e pré-adolescente. Ela é o que os americanos chamam de uma ‘tomboy’, uma garota que gosta de esportes violentos, frequenta um universo dominado por garotos, convive e se comporta como um deles. 

Apesar de focar na busca de identidade da personagem, o filme opta por nada mostrar de sua vida familiar. Grande acerto! Toda a ação se passa no centro esportivo da escola (para negros?), em que está a academia de boxe onde ela treina diariamente, mas em que há também uma academia de dança, onde ensaia um 'dance drill team', um fechado grupo de meninas negras chamado The Lionesses / As Leoas. Alguma coisa ali desvia o foco de Toni, que se distancia do boxe, passa a se interessar pela dança das gurias e aos poucos vai sendo absorvida não apenas pelo grupo das garotas, mas pelo mundo delas.  É sobre isso que fala o filme: a descoberta do universo feminino realizada por uma menina que ainda não vive nele. Nas garotas do grupo de dança Toni vislumbra um mundo que, como o seu, também é guiado pela força, mas associada a uma certa 'qualidade misteriosa do feminino', que ela ainda não tem, e deseja. 

O centro esportivo da escola e o grupo de dança usados no filme são reais; de fato existem em Cincinnati, Ohio, uma cidade situada exatamente no limite entre o norte e o sul dos Estados Unidos, onde a segregação, seja étnica ou econômica, sempre esteve muito presente. Também não há atores profissionais no projeto. As dançarinas (mesmo a protagonista) são interpretadas por elas próprias. Tudo isso a princípio dá ao longa um toque de realismo quase documental. Mas aí entra a engenhosa ficção trazendo novas ambivalências à história .. As meninas mais experientes do grupo começam, uma após outra, a apresentar estranhas crises de desmaio, contorção e convulsão durante os ensaios. Ninguém consegue explicar o motivo dos ataques e se suspeita que provenha de uma contaminação da água. 

Com um nome no mínimo inspirador - Royalty Hightower / Torre da Realeza (foto abaixo) - a menina que vive a Toni está perfeita no papel. Um desses achados de casting que fazem a gente acreditar no 'santo padroeiro do cinema independente'. Ou talvez tenha sido o resultado de uma longa e adequada preparação que a permitiu construir lentamente sua própria Toni (não creio!). O filme inteiro é desenhado na subjetividade ambígua da protagonista, e a jovem atriz, com poucas falas e muitos movimentos, consegue alcançar o nível exato da complexidade exigida pela personagem. Talento é assim, já nasce feito. 

A histeria foi durante muito tempo (e não por acaso) considerada uma doença das mulheres. Nesse filme, os ataques das dançarinas são sintomas de um processo patológico já bem estudado, a "histeria em massa" ou "histeria coletiva". As crises vão se sucedendo entre as meninas, e o que a princípio era ameaçador e doentio, passa a ter a função de um ritual de passagem que elas inconscientemente usam para se sentirem ajustadas e bem aceitas no grupo. 

Toni é uma das poucas que ainda não tiveram o "ataque". Ela quer desesperadamente fazer parte desse grupo, mas não consegue sentir da mesma forma que as outras meninas. Como lidar com isso? .. Não conto mais !! Vejam o filme. Prometo que não vão se arrepender. O novo cinema está aí. É de baixo orçamento, criativo, desafiador, e muito bom. 

Dario PR


ps> filme visto na Sala Web no 72º Venice International Film Festival