‘Que Horas Ela Volta?’, de Anna Muylaert, é uma grata surpresa. E prova que um grande filme pode ser feito com
simplicidade e singeleza quando se tem uma boa premissa, uma equipe afiada e
uma mão experiente na direção.
Muylaert debutou no Cinema Brasileiro em 2002 com o excelente
‘Durval Discos’ - uma ode à cultura do vinil com toques de humor negro - à época
consagrado em Gramado com 7 kikitos, incluindo melhor filme pelo júri
oficial, da crítica e do público. Em 2009 ela novamente arrebata a cinefilia
nacional com o ótimo 'É Proibido Fumar', um drama envolvendo romance e suspense
estrelado por Glória Pires e Paulo Miklos. Agora, seis anos depois, com vários
títulos no currículo nas funções de roteirista, diretora e produtora, e transitando
com presteza entre cinema e televisão, ela volta a deixar sua potente marca na cena fílmica brasileira com esse ‘Que Horas Ela Volta?’, sua
melhor obra até agora, em que revela maturidade e domínio tanto
da arte quanto da técnica de se produzir um bom filme.
E aqui cabe ressaltar a função definitiva do roteiro na
construção cinematográfica. Passam-se as décadas e ainda não se
encontrou nada que possa substituir um bom argumento, construído com respeito à dramaturgia,
partejado por personagens consistentes, num cenário convincente. Efeitos
especiais, preciosismos estilísticos, verborragia intelectualoide .. nada
disso funciona se o filme não está alicerçado nas vigas mestras da linguagem audiovisual.
Em cinema, não dá pra sair inventando. Ou se sabe fazer ou não se sabe. Muylaert pertence ao time dos que sabem.
A empregada doméstica Val (Regina Casé em performance
absoluta) é uma mulher subserviente que se sente inferior às pessoas que a
cercam .. Ela mora na casa de seus patrões, uma família de classe média
alta paulistana, cuja figura dominante é a mãe Bárbara (Karine Teles, excelente), que por
sua vez se sente superior às outras pessoas .. Val já trabalha há 13 anos como babá do adolescente Fabinho (Michel Joelsas [foto] de ‘Quando Meus Pais
Saíram de Férias’). Mas tem uma filha que vive em Pernambuco e foi criada por parentes: Jéssica (Camila Márdila, fulminante), que não se sente superior
nem inferior a ninguém, apenas igual a todo mundo ..
A mola-mestra da trama é justamente a chegada de Jéssica,
que vem a São Paulo fazer vestibular pra arquitetura e se instala na casa da
família, desequilibrando o status quo
aparentemente estável das relações sociais ali imbricadas. Daí em diante o
filme é só prazer e envolvimento, desfiando uma série de situações tão
plausíveis quanto inusitadas, que prendem o espectador pelas entranhas, alternando
e mesclando com sutileza momentos de reflexão e deleite, tudo num piscar de olhos.
Impossível não pensar num diálogo entre ‘Que Horas’ e ‘Casa Grande’, de Filipe Barbosa, no que se refere à temática
sócio-familiar e suas estruturas hierárquicas, especialmente na forma como ambos
abordam a ambivalência das relações patrões-empregados no ambiente doméstico.
Mas nada que possa ser pensado como plágio ou referência. Não. O diálogo aqui é
mais sutil. Tem a ver com “estar antenado” às
questões que são urgentes em nossa sociedade, que já não têm como ser adiadas e
são determinantes pra que possamos avançar rumo a uma existência mais justa e solidária.
Como ressaltou Muylaert ao apresentar sua obra em Gramado,
‘Que Horas’ é um filme sobre a arquitetura dos afetos nas relações de
poder. Um longa que - embora político - busca a humanidade dos
personagens e traz à luz regras separatistas invisíveis da cultura brasileira. Mas, acima de tudo, o filme propõe a utopia de que chegará o tempo em que o respeito pelo outro vai dar o tom das nossas interações sociais. Tomara !!
O longa é leve, fluido, passa rápido, segura nossa atenção o
tempo todo, e deixa no ar uma vontade boa de “quero mais”. Apesar de todas
essas qualidades, em nenhum momento é pretensioso, e esse é um de seus maiores trunfos. É cotidiano e profundo como uma chuva de outono ..
“É o projeto da casa, é o corpo na cama, é o carro
enguiçado, é a lama, é a lama ..
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã, é um resto de mato na luz da manhã ..
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã, é um resto de mato na luz da manhã ..
Viva o Cinema Brasileiro !!
DarioPR
08/Ago/2015
ps: filme visto na abertura do 43º Festival de Cinema de Gramado.
DarioPR
08/Ago/2015
ps: filme visto na abertura do 43º Festival de Cinema de Gramado.