Quarto longa
a ser exibido na mostra competitiva nacional aqui em Gramado, ‘Ausência’ usa os
dilemas de um adolescente para falar não apenas da não-presença, mas também do
vazio, da solidão, do abandono e da falta.
Através de uma
história simples, de pessoas comuns, e sem propor tramas complicadas ou eventos
melodramáticos, o filme começa costurando, com leveza corriqueira, um cotidiano
banal em que “aparentemente” nada acontece. Aos poucos as subjetividades vão
sendo invadidas e emoções recônditas são reveladas, desenrolando um tecido de sentimentos
universalmente compartilhados, e provocando no espectador um olhar emotivo,
silencioso; uma intimidade e uma identificação quase inevitáveis. Mais que um
filme, uma pedra, preciosa.
Serginho é
um menino de 15 anos que precocemente necessita tornar-se adulto. Ele vive numa
periferia paulistana, onde trabalha numa feira ajudando seu tio, dono da
barraca, e entregando verduras de bicicleta na casa dos clientes. Estuda, mas
não costuma ir à escola. Tem dificuldade em aprender, é disperso, tem vergonha
de sua caligrafia e já repetiu de ano algumas vezes. Mora com a mãe alcoólatra
e o irmão caçula num pequeno e humilde apartamento. Seu pai sumiu de casa sem deixar
rastro nem explicação, apenas ‘ausência’. Serginho assume então o lugar de homem-da-casa.
A mãe
trabalha fazendo bolos para fora, mas é uma mulher distímica, beirando a
bipolaridade: um dia está bem, amorosa, atenciosa, e no outro destrutiva,
irritada, agressiva com os filhos. Ela gosta de beber em casa, sozinha, e nem
sempre consegue concluir as encomendas. Sente-se um estorvo na vida do filho,
tendo que ser amparada por ele, quando na verdade sabe que deveria ampará-lo.
Serginho é maduro
pra sua idade, não rouba, não se prostitui, não usa drogas, ajuda em casa,
cuida do irmão mais novo e das ressacas da mãe. Seus pensamentos refletem a
angústia pelo sumiço do pai e o despertar da sexualidade. Gosta de passear de
bicicleta enquanto faz as entregas, e de ir a um circo que está fazendo
temporada no bairro. Nesse dia-a-dia sem fantasias, é nesse circo que ele
encontra seu lugar de encantamento.
A feira é
onde Serginho conhece as agruras da vida, faz o trabalho pesado, sofre bullying de outro feirante, o Formigão, e vive numa tensão
latente com seu chefe e tio Lazinho. Mas é também o lugar onde ele tem alguns
amigos, como o Mudinho, um adolescente surdo-mudo que toma conta dos carros, e
a Silvinha, uma japonesinha que trabalha na barraca de peixes. Mudinho e
Serginho se entendem de uma forma muito peculiar, com gestos, cutucões, um
pouco de leitura labial e muito silêncio. Mudinho é alegre, vivo; Serginho, mais
contido, fala pouco. Porém com Mudinho ele solta um lado brincalhão e
divertido, reparte suas fantasias sexuais e suas paqueras, principalmente por
Silvinha, com quem desenvolve um vínculo afetivo-sensual.
Serginho tem
um cliente especial a quem costuma visitar, o professor Ney, homossexual solitário
que mora com uma cadelinha, Kenga, que o menino adora. Ele é professor de
português, tem atração por rapazes mas não se deixa levar pelo desejo gratuito.
É a pessoa com quem o adolescente se abre e confessa seus dilemas e mágoas. Ney
escuta-o com respeito e um carinho quase paternal. Serginho tem fascinação e um
enorme afeto pelo professor ..
O elenco
brilha em cena. Matheus Fagundes,
que na época das filmagens tinha apenas 16 anos, constrói um protagonista
vigoroso, ambivalente e convincente, com quem é fácil se identificar. Não à-toa
abocanhou o troféu Redentor de melhor ator no último Festival do Rio. Gilda Nomacce enche de densidade a Luzia, uma mãe disfuncional e antagônica, cujas
atitudes seriam facilmente passíveis de sumária condenação. Não, nada é tão
simples assim, e Gilda redime sutilmente a humanidade de sua personagem .. Dá
vontade de levar pra casa. É uma atriz como poucas no Cinema Brasileiro, e desde
já fortíssima candidata ao Kikito de melhor atriz coadjuvante (quiçá melhor atriz). Irandhir Santos nos brinda com mais uma
atuação genial. Ao contrário do gay estereotipado de Tatuagem, aqui ele passa ao
espectador todo o desejo homoerótico do personagem apenas na sutileza dos olhares,
na força das intenções. Esplêndido.
Direção,
roteiro, fotografia, direção de arte, montagem, produção, finalização .. tudo
nota mil. Mais um belo trabalho da Bossa Nova Filmes. A trilha sonora rara e competente é assinada por Kassin. Eu gostaria
que o filme tivesse mais respiros musicais. No entanto essa é uma demanda
pessoal minha, e poderia pôr em cheque a estética da “ausência” buscada pelo
diretor.
Chico
Teixeira durante muitos anos foi um importante e premiado documentarista
brasileiro. Em 2007 lança seu primeiro longa de ficção, o inesquecível ‘A Casa
de Alice’, que foi exibido em 63 festivais e ganhou 33 prêmios. Com ‘Ausência’
– segundo longa ficcional – ele retoma seu objeto de análise: a intimidade e
crueza das relações humanas. Sua câmera é focada nos pequenos movimentos internos,
prioriza os diálogos ligeiros e uma narrativa que se constrói através dos
olhares, dos corpos e das mínimas ações, todas elas retratadas de forma quase
documental, e enquadradas com a mesma abordagem incidental, sem criar
hierarquia entre ações cotidianas e ações com função narrativa. Luxo !!
Num momento
em que o Cinema Brasileiro tem se tornado tão televisivo, é um deleite assistir
a um filme que sabe com precisão o que diferencia essas janelas, que
intencionalmente se recusa a fazer concessões, e se orgulha de ser pura e
simplesmente CINEMA. Só nos resta, comovidos, agradecer: Obrigado, gente, muito
obrigado mesmo ..
.Dario PR