AUSÊNCIA (2014/SP/87'), de Chico Teixeira - crítica por DarioPR



Quarto longa a ser exibido na mostra competitiva nacional aqui em Gramado, ‘Ausência’ usa os dilemas de um adolescente para falar não apenas da não-presença, mas também do vazio, da solidão, do abandono e da falta.

Através de uma história simples, de pessoas comuns, e sem propor tramas complicadas ou eventos melodramáticos, o filme começa costurando, com leveza corriqueira, um cotidiano banal em que “aparentemente” nada acontece. Aos poucos as subjetividades vão sendo invadidas e emoções recônditas são reveladas, desenrolando um tecido de sentimentos universalmente compartilhados, e provocando no espectador um olhar emotivo, silencioso; uma intimidade e uma identificação quase inevitáveis. Mais que um filme, uma pedra, preciosa.

Serginho é um menino de 15 anos que precocemente necessita tornar-se adulto. Ele vive numa periferia paulistana, onde trabalha numa feira ajudando seu tio, dono da barraca, e entregando verduras de bicicleta na casa dos clientes. Estuda, mas não costuma ir à escola. Tem dificuldade em aprender, é disperso, tem vergonha de sua caligrafia e já repetiu de ano algumas vezes. Mora com a mãe alcoólatra e o irmão caçula num pequeno e humilde apartamento. Seu pai sumiu de casa sem deixar rastro nem explicação, apenas ‘ausência’. Serginho assume então o lugar de homem-da-casa.

A mãe trabalha fazendo bolos para fora, mas é uma mulher distímica, beirando a bipolaridade: um dia está bem, amorosa, atenciosa, e no outro destrutiva, irritada, agressiva com os filhos. Ela gosta de beber em casa, sozinha, e nem sempre consegue concluir as encomendas. Sente-se um estorvo na vida do filho, tendo que ser amparada por ele, quando na verdade sabe que deveria ampará-lo.

Serginho é maduro pra sua idade, não rouba, não se prostitui, não usa drogas, ajuda em casa, cuida do irmão mais novo e das ressacas da mãe. Seus pensamentos refletem a angústia pelo sumiço do pai e o despertar da sexualidade. Gosta de passear de bicicleta enquanto faz as entregas, e de ir a um circo que está fazendo temporada no bairro. Nesse dia-a-dia sem fantasias, é nesse circo que ele encontra seu lugar de encantamento. 

A feira é onde Serginho conhece as agruras da vida, faz o trabalho pesado, sofre bullying de outro feirante, o Formigão, e vive numa tensão latente com seu chefe e tio Lazinho. Mas é também o lugar onde ele tem alguns amigos, como o Mudinho, um adolescente surdo-mudo que toma conta dos carros, e a Silvinha, uma japonesinha que trabalha na barraca de peixes. Mudinho e Serginho se entendem de uma forma muito peculiar, com gestos, cutucões, um pouco de leitura labial e muito silêncio. Mudinho é alegre, vivo; Serginho, mais contido, fala pouco. Porém com Mudinho ele solta um lado brincalhão e divertido, reparte suas fantasias sexuais e suas paqueras, principalmente por Silvinha, com quem desenvolve um vínculo afetivo-sensual.

Serginho tem um cliente especial a quem costuma visitar, o professor Ney, homossexual solitário que mora com uma cadelinha, Kenga, que o menino adora. Ele é professor de português, tem atração por rapazes mas não se deixa levar pelo desejo gratuito. É a pessoa com quem o adolescente se abre e confessa seus dilemas e mágoas. Ney escuta-o com respeito e um carinho quase paternal. Serginho tem fascinação e um enorme afeto pelo professor ..

O elenco brilha em cena. Matheus Fagundes, que na época das filmagens tinha apenas 16 anos, constrói um protagonista vigoroso, ambivalente e convincente, com quem é fácil se identificar. Não à-toa abocanhou o troféu Redentor de melhor ator no último Festival do Rio. Gilda Nomacce enche de densidade a Luzia, uma mãe disfuncional e antagônica, cujas atitudes seriam facilmente passíveis de sumária condenação. Não, nada é tão simples assim, e Gilda redime sutilmente a humanidade de sua personagem .. Dá vontade de levar pra casa. É uma atriz como poucas no Cinema Brasileiro, e desde já fortíssima candidata ao Kikito de melhor atriz coadjuvante (quiçá melhor atriz). Irandhir Santos nos brinda com mais uma atuação genial. Ao contrário do gay estereotipado de Tatuagem, aqui ele passa ao espectador todo o desejo homoerótico do personagem apenas na sutileza dos olhares, na força das intenções. Esplêndido.  

Direção, roteiro, fotografia, direção de arte, montagem, produção, finalização .. tudo nota mil. Mais um belo trabalho da Bossa Nova Filmes. A trilha sonora rara e competente é assinada por Kassin. Eu gostaria que o filme tivesse mais respiros musicais. No entanto essa é uma demanda pessoal minha, e poderia pôr em cheque a estética da “ausência” buscada pelo diretor.

Chico Teixeira durante muitos anos foi um importante e premiado documentarista brasileiro. Em 2007 lança seu primeiro longa de ficção, o inesquecível ‘A Casa de Alice’, que foi exibido em 63 festivais e ganhou 33 prêmios. Com ‘Ausência’ – segundo longa ficcional – ele retoma seu objeto de análise: a intimidade e crueza das relações humanas. Sua câmera é focada nos pequenos movimentos internos, prioriza os diálogos ligeiros e uma narrativa que se constrói através dos olhares, dos corpos e das mínimas ações, todas elas retratadas de forma quase documental, e enquadradas com a mesma abordagem incidental, sem criar hierarquia entre ações cotidianas e ações com função narrativa. Luxo !!

Num momento em que o Cinema Brasileiro tem se tornado tão televisivo, é um deleite assistir a um filme que sabe com precisão o que diferencia essas janelas, que intencionalmente se recusa a fazer concessões, e se orgulha de ser pura e simplesmente CINEMA. Só nos resta, comovidos, agradecer: Obrigado, gente, muito obrigado mesmo ..


.Dario PR