Esse não é apenas um documentário,
é uma celebração de uma vida em que o espírito do espectador eleva-se,
ampliando sua visão numa narrativa que se ergue em quadros de uma realidade clarividentemente
cristalina em sua sinceridade, tornando a película uma centelha do gênio de
Cássia Eller. Algo como uma faísca incendiária de fúria afetiva, uma
voracidade, uma sede de infinito doce, uma virilidade delicada, enfim, a senda
para a realidade da luz de um ser nobre.
Cassia não era bruta,
era uma dama polidamente selvagem, não tinha classe e sim um estilo inato que
petrificava os olhares. Não tinha voz, mas um timbre vocálico que mais se
assemelhava a um cataclisma meteórico incitando os tímpanos ao retorno à
verdadeira natureza das coisas. Não conseguia fazer mise-en-scène para repórteres por mais que tentasse, simplesmente
ficava sensivelmente fechada, parecendo envergonhada pelas próprias pessoas com
suas perguntas inférteis, tão longe do sopro real da vida que conhecia tão bem
no palco. Num envergonhamento mútuo silenciava, se enrolava nas entrevistas. Em
suma, era melhor ser tímida.
Numa narrativa
minuciosa os planos vão se desvelando entre as fases estéticas da cantora, em
seus passos cadenciados de amadurecimento artístico, seu florescimento surgindo
numa exuberante amálgama de estilos musicais. Num puro afeto fraternal e
juvenil com os amigos em Brasília, no começo de carreira, com a banda
simplória, a família e a proporção que toda aquela trajetória vai tomando até
ganhar a veneração da mídia e das massas.
Recortes fotográficos produzidos em efeitos dimensionais denotam uma
impressão vítrea, trazendo uma delicada memória viva dos arquivos documentais
de belos instantes de sua existência. O sangue que arde num deleite punk
inflama o ritmo do filme em sua estrutura de montagem, alternando momentos
comoventes de uma embriaguez, num embevecimento dignamente solar de seu lado
intimo, com sua gravidez ou sua relação com Nando Reis e Maria Eugênia.
Sua voz, sua luz
sonora, simbolizava um triunfo sobre a penumbra existencial, religiosa, sobre a
mácula do tradicionalismo agrilhoado e a hipocrisia escravista do estado
democrático. A mesma voz que foi condenada e suicidada pela opinião de toda uma
sociedade midiática que a venerava antes, e que cruelmente conspirou em sua
morte e na missa de 7º dia. Mas o que fica são os discos e a memória eterna de
suas performances, reinventando a Música Popular Brasileira.
- Eu tenho medo de
gente, dizia Cássia.
Paulo Henrique
Fontenelle se consagra aqui mais uma vez como grande documentarista após sua
trajetória com os longas ‘Loki’, ‘Dossiê Jango’ e o curta ficcional ‘Mauro
Shampoo’, todos eles lhe rendendo vários prêmios festivais a fora.
Pedro Azevedo