CÁSSIA ( 2014 / Brasil / Documentário / 120' ) de Paulo Henrique Fontenelle - por Pedro Azevedo


Esse não é apenas um documentário, é uma celebração de uma vida em que o espírito do espectador eleva-se, ampliando sua visão numa narrativa que se ergue em quadros de uma realidade clarividentemente cristalina em sua sinceridade, tornando a película uma centelha do gênio de Cássia Eller. Algo como uma faísca incendiária de fúria afetiva, uma voracidade, uma sede de infinito doce, uma virilidade delicada, enfim, a senda para a realidade da luz de um ser nobre.

Cassia não era bruta, era uma dama polidamente selvagem, não tinha classe e sim um estilo inato que petrificava os olhares. Não tinha voz, mas um timbre vocálico que mais se assemelhava a um cataclisma meteórico incitando os tímpanos ao retorno à verdadeira natureza das coisas. Não conseguia fazer mise-en-scène para repórteres por mais que tentasse, simplesmente ficava sensivelmente fechada, parecendo envergonhada pelas próprias pessoas com suas perguntas inférteis, tão longe do sopro real da vida que conhecia tão bem no palco. Num envergonhamento mútuo silenciava, se enrolava nas entrevistas. Em suma, era melhor ser tímida.

Numa narrativa minuciosa os planos vão se desvelando entre as fases estéticas da cantora, em seus passos cadenciados de amadurecimento artístico, seu florescimento surgindo numa exuberante amálgama de estilos musicais. Num puro afeto fraternal e juvenil com os amigos em Brasília, no começo de carreira, com a banda simplória, a família e a proporção que toda aquela trajetória vai tomando até ganhar a veneração da mídia e das massas.

Recortes fotográficos produzidos em efeitos dimensionais denotam uma impressão vítrea, trazendo uma delicada memória viva dos arquivos documentais de belos instantes de sua existência. O sangue que arde num deleite punk inflama o ritmo do filme em sua estrutura de montagem, alternando momentos comoventes de uma embriaguez, num embevecimento dignamente solar de seu lado intimo, com sua gravidez ou sua relação com Nando Reis e Maria Eugênia.

Sua voz, sua luz sonora, simbolizava um triunfo sobre a penumbra existencial, religiosa, sobre a mácula do tradicionalismo agrilhoado e a hipocrisia escravista do estado democrático. A mesma voz que foi condenada e suicidada pela opinião de toda uma sociedade midiática que a venerava antes, e que cruelmente conspirou em sua morte e na missa de 7º dia. Mas o que fica são os discos e a memória eterna de suas performances, reinventando a Música Popular Brasileira.

- Eu tenho medo de gente, dizia Cássia.

Paulo Henrique Fontenelle se consagra aqui mais uma vez como grande documentarista após sua trajetória com os longas ‘Loki’, ‘Dossiê Jango’ e o curta ficcional ‘Mauro Shampoo’, todos eles lhe rendendo vários prêmios festivais a fora.


Pedro Azevedo